Mesmo sem energia elétrica, saneamento básico, asfalto ou posto de saúde, pequenas cidades investiram milhões em shows de cantores, a maioria deles sertanejos, neste ano. Deputados e senadores enviam os recursos diretamente para o caixa das prefeituras, que podem dar ao dinheiro o destino que bem entenderem, sem prestação de contas.
Localizada a 110 quilômetros de Maceió, a cidade de Mar Vermelho, no Alagoas, está entre os cem municípios de menor renda no país. Seus 3.474 habitantes enfrentam problemas, como falta de saneamento — presente em apenas 14,9% das casas —, ausência de pavimentação — só 24% das moradias estão em ruas com urbanização adequada — e de emprego (9,4% da população estava empregada em 2019). Ainda assim, o prefeito André Almeida (MDB) gastou R$ 370 mil com Luan Santana. É como se cada morador tivesse de desembolsar R$ 106 com o cachê. A apresentação será em agosto, a dois meses das eleições.
Luan Santana é um dos artistas contratados por meio das chamadas "emendas Pix" para show em Mar Vermelho (AL) FOTO: RODOLFO MAGALHÃES
Casos como esse se proliferam pelo interior do país, onde inexistem políticas públicas. Levantamento do Estadão mostra gastos superiores a R$ 14,5 milhões com cachês de Gusttavo Lima, Zé Neto e Cristiano, Wesley Safadão, Luan Santana e Leonardo em 48 cidades. Os artistas foram contratados por prefeituras para fazer shows neste ano em municípios com menos de 50 mil habitantes.
A festança só foi possível com a ajuda de Brasília: as cidades que contrataram os shows receberam R$ 28,5 milhões em emendas parlamentares de uso livre. São as chamadas "emendas Pix". O dinheiro cai direto na conta da prefeitura e nem mesmo os vereadores sabem ao certo quanto será gasto com os shows. Parte dos municípios nem sequer publicou os contratos. Dos 48 shows bancados com verba pública, o Estadão conseguiu rastrear os cachês em 35 deles.
Especialistas em contas públicas criticam a destinação do dinheiro.
— É mais fácil desviar recursos por causa de um show do que por causa de uma obra. Uma obra pode ser aferida. Num show, é tudo muito relativo, o que é mais um motivo para essa profusão — afirmou Gil Castello Branco, da Contas Abertas.
— Esse é um sintoma claro da captura do orçamento por interesses menores em que o dinheiro é desperdiçado com gastos de baixa eficiência, baixa qualidade e questionável prioridade — disse Marcos Mendes, do Insper.
Os recursos que vão patrocinar o show de Luan Santana em Mar Vermelho foram enviados pelo senador Renan Calheiros e pelo deputado Isnaldo Bulhões, ambos do MDB alagoano. Ao fazer a emenda, o parlamentar não determina qual será o destino do dinheiro. Trata-se de uma decisão que cabe ao prefeito.
Renan disse que costuma apoiar o Festival de Inverno da cidade, mas afirmou ser contra a contratação de artistas a preços exorbitantes.
— Eles pedem todo ano uma participação para este festival. Mas não fizemos isso para (a prefeitura) contratar (artistas) com esses honorários que estão sendo denunciados, não. Sou contra — declarou o senador.
Bulhões, por sua vez, ressalvou que a emenda foi para a cidade, não para custear show.
Embaixador
Em São Luiz, em Roraima, município com 8.232 habitantes, a prefeitura aceitou pagar R$ 800 mil por um show de Gusttavo Lima em dezembro. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que menos da metade da população tem tratamento de esgoto adequado e apenas 17% das vias públicas estão urbanizadas. Na contratação, sob investigação do Ministério Público, a prefeitura argumentou que se tratava de "show musical do artista de notável reconhecimento".
O Estadão revelou, na quarta-feira (1º), o caso de Teolândia, na Bahia, que contratou Gusttavo Lima por R$ 704 mil enquanto a população ainda enfrenta os efeitos das chuvas que atingiram a região, com estradas em estado precário e pontes destruídas. O cantor foi escolhido porque a prefeita Maria Santana (Progressistas) disse que "sonhava" em conhecê-lo. Neste domingo (5), o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, mandou cancelar de vez a Festa da Banana, a poucas horas da apresentação.
Justificativa
A prefeitura de Areia Branca, em Sergipe, aceitou pagar R$ 550 mil a Wesley Safadão para uma festa que vai superar R$ 1,5 milhão em gastos com cachês. Em documento oficial, a cidade usou uma frase do professor Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, autor do livro Contratação Direta Sem Licitação, copiada também em outros contratos semelhantes: "Todo profissional é singular, posto que esse atributo é próprio da natureza humana".
Além dos cachês, há uma ampla estrutura de palco, sonorização e equipes de segurança custeadas pelos cofres públicos. Em Santa Terezinha do Itaipu, no Paraná, com 23 mil habitantes, uma festa teve Gusttavo Lima, por R$ 850 mil. A prefeitura gastou ao menos R$ 2,2 milhões com as demais atrações e estrutura.
Transparência
Em vários shows não é possível saber de quanto será o cachê. É o caso de Conceição do Jacuípe, na Bahia, com 33,6 mil habitantes, onde 20% dos moradores não têm asfalto na frente de suas casas. Mesmo assim, a prefeitura contratou o cantor Wesley Safadão para a festa junina. Por quanto? O vereador Edinaldo Puridade (sem partido) disse que só conseguirá saber depois do pagamento efetuado.
Outra cidade baiana que contratou um show de Luan Santana, mas não divulgou o cachê, foi Itiruçu, com 12 mil habitantes. Por lá, os vereadores inovaram e aprovaram projeto autorizando a prefeitura a contratar sem aval do Legislativo. No Portal da Transparência, não há uma única informação do show. Procurados, os artistas mencionados não retornaram aos contatos da reportagem.
FONTE: ESTADÃO CONTEÚDO André Shalders, Daniel Weterman, Julia Affonso e Vinícius Valfré